Discurso do Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães na formatura da última turma do Rio Branco. Samuel chegou a ser afastado no governo anterior e ao assumir a Secretaria-Geral foi alvo de muitos ataques, injustiças, mal-entendidos, distorções. Atacam a pessoa, mas estão mesmo na caça de suas idéias. Essa é uma oportunidade de conhecer um pouco do que incomoda tanta gente no Brasil.
"Bom dia a todas as senhoras e senhores.
Excelentíssimo Senhor Presidente da República,
Dona Marisa Letícia,
Excelentíssimo Senhor Ministro de Estado, Celso Amorim,
e Sra. Ana Maria Amorim.
Queria cumprimentar, em primeiro lugar, todos os familiares dos formandos; os colegas Embaixadores; todos os demais colegas; a turma do Instituto Rio Branco e o seu Diretor, Embaixador Fernando Reis.
Agradeço a escolha como Paraninfo dessa turma do Rio Branco, a primeira da reforma, que representa um novo tempo. Essa não é uma homenagem feita a mim, mas à política externa conduzida pelo Senhor Presidente da República, assessorado pelo Senhor Ministro de Estado.
Esta é uma turma de diplomatas do Século XXI. O século XXI será, para nós, brasileiros, e para esta turma, um século muito diferente. Estamos diante de um processo de reconstrução do sistema mundial. Há alguns anos, o Senhor Presidente da República mencionou a idéia de uma nova geografia econômica e política no mundo. Na realidade, hoje a situação de crise leva a uma nova geografia, a uma nova distribuição do poder em nível mundial.
Em primeiro lugar, estamos diante de uma grave crise econômica, que decorreu de um processo de globalização e de desregulamentação acelerada e irresponsável; de uma idéia de Estado mínimo, de que o Estado deveria se retirar da economia, e de preferência, desaparecer. Era a idéia do fim das fronteiras, o fim dos Estados nacionais.
Em segundo lugar, estamos diante de uma crise ideológica. A crise ideológica decorre do fato de que, durante muitos anos, a maioria dos Estados se convenceu de que o neoliberalismo era a teoria correta para a explicação do mundo econômico e do mundo político. Hoje, o mesmo Estado que iniciou esse processo de liberalização, de transformação da economia mundial, o Reino Unido, foi o primeiro a estatizar seus bancos. Estamos, portanto, diante de uma crise ideológica, que requer uma redefinição do capitalismo - talvez o "capitalismo do século XXI".
Em terceiro lugar, vivemos uma gravíssima crise ambiental, talvez a mais séria de todas as crises- já que a crise econômica talvez seja superada em breve. A crise ambiental requer uma mudança do próprio modo de ser do sistema capitalista: a idéia do individualismo, a idéia da liberdade total dos indivíduos de escolher o que produzir e o modo de produzir. Esta é uma crise extremamente difícil de ser enfrentada e que tem conseqüências em todas as partes do mundo, inclusive no nosso território, sem que possamos enfrentá-la sozinhos. Temos de enfrentá-la em coordenação e em cooperação com os demais países, tanto desenvolvidos, quanto em desenvolvimento. A crise energética, vinculada à crise ambiental e ao modo tradicional de utilização da energia, é igualmente profunda.
Finalmente, há o uma crise política, gerada pela emergência da China como grande potência internacional e pelo desafio de acomodá-la no sistema internacional. Isso inclui também a emergência de outros países, os BRICs, entre eles, o Brasil, que vem de ser reconhecido pelo prêmio Nobel de Economia, Edmund Phelps, como a economia mais bem preparada para enfrentar a crise econômica. Pode-se chamar isso de crise política para os países que dominaram o sistema internacional, do ponto de vista político, militar e econômico, durante décadas e talvez até séculos (alguns desses mesmos países já estavam no Congresso de Viena, em 1815). De modo que este é um processo de reconstrução do sistema mundial.
Estamos diante de um processo de construção nacional, de enfrentamento de grandes desafios internos. O primeiro deles é a realização do potencial brasileiro. Se fizermos uma lista dos dez maiores países do mundo em território, população e produto interno bruto, somente três países estariam nessas três listas simultaneamente: os Estados Unidos, a China e o Brasil. O potencial brasileiro está muito longe de ser plenamente utilizado. Esta é uma tarefa de construção nacional extraordinária, a construção da infra-estrutura, tanto no seu aspecto físico, mas também da infra-estrutura humana: transformar e qualificar a massa da população brasileira, a enorme massa da população brasileira excluída, e o sistema empresarial brasileiro.
O segundo desafio é a superação das vulnerabilidades externas. Do ponto de vista político, até hoje não fazemos parte - apesar de estarmos nos aproximando - dos principais mecanismos de decisão política do sistema internacional. Temos ainda certa vulnerabilidade militar e uma vulnerabilidade relativa no campo econômico-tecnológico, devido à insuficiência de produção tecnológica. Aliás, no campo científico tivemos ontem a notícia de que o Brasil passou de 15º para 13º lugar dentre os países de maior produção científica, o que foi um feito extraordinário. Isso infelizmente não ocorre no campo das patentes, que se refere à transformação do conhecimento científico em conhecimento tecnológico.
O terceiro desafio refere-se à superação das disparidades. Não vou entrar em detalhes sobre isso, porque, diante do Presidente Lula, seria inadequado. Todos sabem que a grande luta da sociedade brasileira é contra as disparidades sociais, a começar pelas disparidades regionais, as disparidades entre o campo e a cidade, as de natureza de gênero, de origem étnica, as disparidades de renda e, mais do que de renda, de propriedade. As disparidades de propriedade são muito mais agudas do que as disparidades de renda, muito mais agudas.
Finalmente, há a construção da democracia, uma democracia em que a participação do povo seja mais efetiva, mais ampla, que é um desafio muito grande para a sociedade brasileira.
A política externa se define diante desses desafios internos e também de desafios externos. Vivemos uma época de grande expansão dos interesses nacionais no exterior, a começar pelo comércio. Houve uma extraordinária diversificação comercial em direção à África, aos países árabes, como fruto da política externa, das numerosas viagens do Presidente da República, do Ministro de Estado e de outros ministros ao continente africano, também aos países árabes, aos países da Ásia. Há uma enorme diversificação das exportações brasileiras, além de um enorme crescimento em termos absolutos no total do comércio. Essa diversificação é extremamente importante porque reduz a nossa vulnerabilidade econômica. Ao mesmo tempo, uma extraordinária e desafiante expansão dos investimentos brasileiros, na América do Sul, mas também em outras regiões, na Europa, em alguns países árabes, na Ásia.
Um desafio recente são as migrações, o fato de que hoje existem cerca de quatro milhões de brasileiros no exterior. Isso cria uma questão também política e econômica, além do aspecto humano e social. A participação das remessas desses brasileiros é extremamente importante para o equilíbrio do balanço de pagamentos do Brasil.
Outra questão importante para a política externa são as assimetrias regionais, a assimetria crescente entre o Brasil e os países vizinhos. Este é um fato gerado pelas próprias dimensões territoriais e econômicas do Brasil, pela diversidade do seu parque produtivo. É um desafio que se revela nos desequilíbrios comerciais, no fato de haver muito mais investimentos brasileiros nos outros países do que desses países sul-americanos no Brasil. Essa preocupação está na base da política que vem sendo executada: o reconhecimento dessas assimetrias, que antes não eram reconhecidas, e o tratamento generoso, fruto da responsabilidade que o Brasil tem em relação aos países vizinhos, como o Presidente costuma dizer. Somos o país com o maior número de vizinhos no mundo - depois da China e da Rússia, que têm, cada uma, 14 países vizinhos; o Brasil tem 10. Esse fato traz grande complexidade para a política externa que os senhores, formandos do Instituto Rio Branco, terão de conduzir no futuro. Será um desafio maior do que o de hoje.
Há, ainda, o desafio de luta pela desconcentração de poder. O sistema internacional se caracteriza por uma extraordinária concentração de poder, tanto político, quanto econômico, tecnológico e militar. Essa luta se manifesta, por exemplo, na candidatura brasileira ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, na participação do Brasil como parte do G-5 junto ao G-8, na criação do Foro IBAS de coordenação com a Índia e com a África do Sul, para, justamente, articular alianças com os grandes Estados da periferia na sua ação de desconcentração de poder. Essa luta pela desconcentração de poder também se verifica no campo econômico, como foi a atuação G-20 comercial, na Rodada de Doha da OMC. Pela primeira vez, os países em desenvolvimento conseguiram se articular para enfrentar aquilo que, normalmente, era uma decisão tomada pelos chamados "grandes países comerciantes", que negociavam entre si e nos apresentavam uma solução fechada. Os países em desenvolvimento não tinham outra opção, senão aceitar aquela solução. A criação do G-20 e o próprio fato de a rodada não ter terminado - poderia ter terminado, se o Brasil e os demais países em desenvolvimento tivessem aceito as propostas feitas pelos países desenvolvidos - mostram essa mudança. O G-20 financeiro é outro exemplo: pela primeira vez na história, os países em desenvolvimento estão tendo participação destacada na reorganização do sistema financeiro internacional.
Finalmente, um grande desafio da política externa - que tem relação com os outros que mencionei - é a questão da normatização das relações internacionais, a criação de normas internacionais. Essas normas podem ser mais ou menos favoráveis ao Brasil, nos diversos campos de negociação. A política externa luta para que haja uma normatização favorável ao desenvolvimento econômico brasileiro. Isso se reflete nas negociações ambientais, por exemplo, e nas outras negociações que mencionei. As normas devem ser favoráveis ao desenvolvimento da sociedade brasileira e à superação dos seus desafios internos.
Em resumo, esses são os grandes desafios que os senhores têm pela frente nos próximos 40 anos de sua carreira.
Gostaria, finalmente, de agradecer mais uma vez esta homenagem - como disse, considero que é uma homenagem à política externa conduzida pelo Presidente da República e pelo Ministro Celso Amorim - e dizer que é, para mim, uma satisfação muito grande estar aqui com os senhores, com todos os colegas, com o Presidente da República, e lembrar que recebi meu diploma do Instituto Rio Branco das mãos do Presidente João Goulart, na presença do Embaixador Araújo Castro, que era Ministro de Estado na época, e do paraninfo da minha turma, que era San Tiago Dantas - San Tiago Dantas estaria feliz aqui.
Muito obrigado."
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