domingo, 17 de outubro de 2010

Eles estão surdos

FERNANDA TORRES

Eles estão surdos


--------------------------------------------------------------------------------
Candidatos fecham o ouvido para o discurso do adversário até transformá-lo numa massa sonora sem relevância --------------------------------------------------------------------------------


HORÁCIO, o amigo confidente de Hamlet, passa toda a tragédia de Shakespeare servindo de ouvido para as angústias do príncipe. No fim, recebe a incumbência de contar às futuras gerações a história do herói, mas a peça termina antes que possa fazê-lo.
Preencher os longos momentos de silêncio, testemunhando todos os dias as mesmas palavras, é exercício fino de atuação. Horácio conduz a poesia por meio de sua atenção e ajuda a fazer a ponte entre Hamlet e o espectador.
O ator Pedro Cardoso costuma dizer que o mundo é feito de monólogos. Segundo ele, ninguém presta realmente atenção no que o outro está dizendo. O ouvinte, no fundo, só espera a pausa do interlocutor para sair falando o que pensava enquanto o parceiro gastava o verbo.
O virulento debate entre os dois candidatos que restaram é um exemplo típico da teoria do Pedro.
Com apenas dois lutadores na arena, a necessidade de contrapor as diferenças triplicou. É forçoso impedir que o recado do oponente chegue ao eleitor. Cada um enaltece sua versão absoluta da realidade e despreza a do concorrente. Qualquer possibilidade que não seja a própria vitória é apresentada como uma catástrofe de proporções bíblicas.
Como sofro de pessimismo crônico e desconfio das vacas gordas, tendo a concordar com as previsões funestas.
A descrição de José Serra do que será o Brasil nas mãos de Dilma Rousseff, tomado por barganhas políticas de cargos nos setores estratégicos e perseguido pela execução sumária dos opositores, me causa arrepios.
Da mesma maneira, tremo quando Dilma prevê o fim da justa distribuição de renda pelas mãos do PSDB ou recorda o processo de privatização no reinado tucano.
Meu impulso é sair estocando comida, água e papel higiênico para me preparar para o dilúvio eminente.
Eu sei que é ingenuidade achar que uma corrida eleitoral acontece na gentileza, mas estou com dificuldade de discernir o real do imaginário, a justiça da calúnia, e me preocupa a falta de perspectiva de diálogo futuro entre os dois oponentes.
Nas edições compactas do debate da Band na internet, o vírus da incomunicabilidade se mostra mais agressivo.
A montagem que favorece Dilma é extraordinária. Editaram apenas o início das respostas de Serra ao final de cada uma das assertivas intervenções da petista. Dilma desanca a suposta intenção de privatização da Petrobras por parte do opositor e Serra responde lacônico: "Sempre voltam a essa questão."
Ponto. E Dilma cai novamente de sola em cima do passivo adversário.
O corte é tão cirúrgico que consegue fazer com que Serra concorde com todas as acusações de Dilma.
O vídeo exemplifica a maneira como os candidatos preparam a escuta na corrida eleitoral. Ao contrário do que se exige do ator que encarna Horácio, o candidato deve fechar o ouvido para o discurso do adversário até transformá-lo, também para o eleitor, em uma massa sonora sem relevância.
Como dizia o rei Roberto: eles estão surdos!
--------------------------------------------------------------------------------
FERNANDA TORRES é atriz

Nenhum comentário:

Postar um comentário