Tema já tantas vezes discutido aqui, o financiamento da economia brasileira, em particular o debate sobre o financiamento externo, está no âmago de nossa estratégia nacional de desenvolvimento para a próxima década. Até o momento, Serra e Dilma não chegaram a detalhar o que pensam, embora tenhamos indícios.
Mais do que o atual quadro, é a trajetória da conta corrente brasileira que me preocupa. Devemos tomar cuidado com o canto da sereia que insiste em naturalizar o déficit. Quando muito, propõe soluções como a contração da demanda (via corte de gastos do governo e aperto monetário) e vem com ilações sobre as gloriosas reformas estruturais. Nada sobre câmbio, nível do juros e nossa longa história de problemas com o endividamento externo.
Abaixo, artigo muito bom, creio que assinaria embaixo.
Quem tem medo da poupança externa?
*Antonio Corrêa de Lacerda
A questão do financiamento do crescimento e do desenvolvimento econômico é uma das mais relevantes para o futuro da economia brasileira. Os investimentos requeridos para melhorar a infraestrutura econômica e social, assim como suportar um crescimento robusto, implicam fontes sustentáveis de financiamento de longo prazo. E para sustentar um crescimento de longo prazo seria fundamental elevar o nível de investimentos, a formação bruta de capital fixo, da média atual dos últimos cinco anos de 18% para, pelo menos, 22% do Produto Interno Bruto (PIB).
Historicamente, o Brasil sempre complementou as suas necessidades de financiamento com poupança externa, às vezes na forma de investimentos estrangeiros e outras na forma de dívida. A diferença é que, no primeiro caso, temos um sócio, que compartilha dos riscos; no segundo, um credor.
Portanto, não tenho dúvida de que a primeira opção é a mais adequada ao desenvolvimento, especialmente se for conduzida de forma a atrair os investimentos que desejamos, ou seja, aqueles voltados para suprir carências, sejam de infraestrutura ou de portfólio industrial e de serviços não viabilizados internamente.
É aí que reside a questão principal, que é mais de ordem qualitativa do que quantitativa. Ou seja, a poupança externa deve ter caráter complementar e ser formada por capitais de risco de longo prazo, direcionados aos setores nos quais não há viabilidade econômica interna ou não temos domínio tecnológico.
Temos uma longa tradição de atratividade de investimentos diretos estrangeiros, que fizeram e fazem parte da nossa industrialização. Nos últimos cinco anos fomos redescobertos pelos investidores externos, com a maior estabilidade da economia, e nos colocamos como o segundo dos maiores absorvedores de investimento direto estrangeiro dentre os países em desenvolvimento. A queda de quase 50% observada no ano passado é reflexo da crise e não revela uma tendência. Pelo contrário, deveremos ver ampliado o interesse dos investidores nos próximos anos.
Portanto, atrair investimento direto estrangeiro não se trata de algo novo para o Brasil, mas que tem de ser mais bem aproveitado. Contraditoriamente à nossa bem-sucedida atratividade, decorrente da potencialidade do mercado, não definimos uma clara estratégia de absorção de capitais externos, tampouco explicitamos a eles o que deles desejamos. Para quais setores queremos atraí-los? Quais contrapartidas são esperadas? Trata-se de uma oportunidade a ser explorada adequadamente.
Para uma corrente de economistas, o ideal é gerar poupança interna, que neste caso representaria um pré-requisito para o investimento e o crescimento. Ela seria obtida pela contração dos gastos correntes do governo e pela criação de instrumentos de incentivo à poupança das famílias.
Essa é uma visão que, especialmente no caso brasileiro, esbarra em problemas estruturais graves, como a concentração de renda, por exemplo. A maior parte das famílias mal ganha o suficiente para sobreviver, e qualquer aumento da renda, como tem ocorrido nos últimos cinco anos, tende a ser carreado para o consumo.
Mas num ponto a preocupação com a geração de “capital caseiro” é pertinente. A dependência de recursos externos torna o País mais vulnerável às variações cíclicas do mercado internacional, fazendo com que a autonomia de crescimento do País seja afetada toda vez que surgem crises e/ou movimentos especulativos. Portanto, corroboro da visão de que o Brasil deve evitar déficits nas transações correntes do balanço de pagamentos.
A outra vertente de economistas considera que a poupança é gerada no processo econômico, portanto não é um pré-requisito. Um cenário promissor e a disponibilidade de fontes de financiamento seriam impulsionadores das decisões de investir, gerando produção, emprego e renda, sendo a poupança gerada em consequência.
A segunda visão me parece mais adequada ao caso brasileiro, pois não podemos nos dar ao luxo de abrir mão do crescimento ou dos programas sociais, por exemplo, para acumular poupança para financiar um possível salto futuro. Ou seja, temos de continuar a utilizar os instrumentos de fomento ao financiamento e, paralelamente, crescer e ir criando condições de gerar mais poupança interna.
Quanto à poupança externa, ela deve ser qualitativamente viabilizada, primeiro porque não temos condições de nos financiarmos com as próprias pernas e, segundo, porque podemos ter o privilégio da escolha e atrair investidores para desenvolver projetos naquelas áreas que demandem mais investimentos.
Mas, para isso, precede a necessidade de um claro Projeto Nacional de Desenvolvimento. Isso pode parecer, num primeiro momento, uma visão ultrapassada, mas é fundamental definir objetivos, estratégias, metas e ações para viabilizar o que almejamos. O crescente déficit em conta corrente do balanço de pagamentos brasileiro e a apreciação do real requerem medidas antecipadas de correção de rumos.
Nesse campo, é bem melhor agir preventivamente do que corrigir os estragos. Mesmo que, como defendem alguns, o câmbio flutuante seja capaz de autoajustar o balanço de pagamentos mediante uma desvalorização potencial da taxa de câmbio. Primeiro, porque isso vai demorar para acontecer; segundo, porque o processo tende a ser traumático; e terceiro, porque, até lá, os seus efeitos colaterais, como a desindustrialização, já terão provocado grandes danos.
*Antonio Corrêa de Lacerda, professor-doutor da PUC-SP, doutor em Economia pela Unicamp, é economista-chefe da Siemens e coautor, entre outros livros, de Economia Brasileira (Saraiva)E-mail: aclacerda@pucsp.br
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