quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Política Externa em debate

Lá no meio desse post já havia insinuado algo a respeito. Aqui, fui bem mais explícito ao falar da recepção ao Presidente do Irã.

Não resisto e transcrevo para deleite, ou eventual crítica, o texto do Fiori hoje no Valor Econômico. É um questionamento ao artigo que o Governador José Serra publicou na Folha no dia da vinda do Presidente do Irã. Achei o artigo de nosso presidenciável fraco, meio oportunista, enfim, jogou para uma minoria radical que se encontra, como Fiori colocou, sem bússula. Mais do que em outros momentos, no mundo de hoje não cabem alinhamentos automáticos. É importante ressaltar que no que se refere aos direitos humanos, o Brasil tampouco está imune a críticas, as mais variadas e legítimas, basta visitar uma cadeia ou passear pelas periferias das grandes cidades. Há uma enorme concentração de renda. A concentração da propriedade e da riqueza é ainda maior. O crime do colarinho branco dificilmente é punido. A justiça é distante, lenta, inatingível.

Bom, voltando ao Fiori, nosso amigo da UFRJ é um dos grandes mestres brasileiros da economia política internacional. Outro dia comento sobre o debate que ele, um realista, travou silenciosamente com o Bresser, um liberal idealista, sobre as perspectivas do futuro. Na verdade, não chegou a ser um debate. Foi uma resposta do Bresser a uma citação negativa do Fiori, que considerara sua visão ingênua. O título da resposta do Bresser foi: "Um mundo menos sombrio".

Pois Fiori não é muito otimista. Para ele, o motor das relações internacionais é a competição inter-estatal. Um misto de concorrência e simbiose entre os países. E a guerra faz parte desse movimento. E as crises financeiras são parte da, como diria, digestão do excesso de recursos financeiros alavancado pela potência hegemônica. Forças militares e a expansão da dívida pública. Valores também. Fiori não acredita em um colapso da hegemonia norte-americana, mas sim uma relativização do poder dos EUA diante de outros países/grupos/regiões.

Já Bresser adota outras perspectivas, é um idealista. Acredita na paz universal, nas instituições, na cooperação internacional. Objetivos comuns, políticas coordenadas. Talvez, num futuro distante, menos sombrio, se materialize a crença liberal na homogeinização da riqueza e no que se convencionou chamar de "progresso". Liberté, Fraternité, Égalité. Vitória. Para o indíviduo? O trabalho ou o capital? O povo? O Estado?

Enfim, é um longo e maravilhoso debate que não cabe aqui. Nem sei se tenho competência para discuti-lo, é filosofia política. Um dia, quem sabe.

Segue o artigo do Fiori atacando certo oportunismo rasteiro, eu diria, de um candidato que, penso, pode oferecer mais. O Governador jogou para a torcida. Mau início. Deve jogar para o país. Para começo de conversa, não hospedamos o Presidente do Irã. Ele passou um dia aqui. Falou e teve que ouvir. E se mandou.

Em política externa a conversa tem que ser séria. Concisa, fiel aos fatos, ao direito, ao costume, ao diálogo para o entendimento. Portanto, deixando de lado o lero-lero, vamos ao artigo do Fiori e tirem suas conclusões:

O debate da política externa: os conservadores

José Luís Fiori


"É desconfortável recebermos no Brasil o chefe de um regime ditatorial e repressivo. Afinal, temos um passado recente de luta contra a ditadura, e firmamos na Constituição de 1988 os ideais de democracia e direitos humanos. Uma coisa são relações diplomáticas com ditaduras, outra é hospedar em casa os seus chefes". José Serra, (Visita indesejável, "Folha de S. Paulo", 23/11/2009).

Já faz tempo que a política internacional deixou de ser um campo exclusivo dos especialistas e dos diplomatas. Mas só recentemente a política externa passou a ocupar um lugar central na vida pública e no debate intelectual brasileiro. E tudo indica que ela deverá se transformar num dos pontos fundamentais de clivagem, na disputa presidencial de 2010. É uma consequência natural da mudança da posição do Brasil, dentro do sistema internacional, que cria novas oportunidades e desafios cada vez maiores, exigindo uma grande capacidade de inovação política e diplomática dos seus governantes.

Nesse novo contexto, o que chama a atenção do observador é a pobreza das ideias e a mediocridade dos argumentos conservadores quando discutem o presente e o futuro da inserção internacional do Brasil. A cada dia aumenta o número de diplomatas aposentados, iniciantes políticos e analistas que batem cabeça nos jornais e rádios, sem conseguir acertar o passo, nem definir uma posição comum sobre qualquer dos temas que compõem a atual agenda externa do país. Pode ser o caso do golpe militar em Honduras, ou da entrada da Venezuela no Mercosul; da posição do Brasil na reunião de Copenhague ou na Rodada de Doha; da recente visita do presidente do Irã, ou do acordo militar com a França; das relações com os Estados Unidos ou da criação e do futuro da Unasul.

Em quase todos os casos, a posição dos analistas conservadores é passadista, formalista, e sem consistência interna. Além disso, seus posicionamentos são pontuais e desconexos, e em geral defendem princípios éticos de forma desigual e pouco equânime. Por exemplo, criticam o programa nuclear do Irã, e o seu desrespeito às decisões da comissão de energia atômica da ONU, mas não se posicionam frente ao mesmo comportamento de Israel e do Paquistão, que além do mais, são Estados que já possuem arsenais atômicos, que não assinaram o Tratado de Não Proliferação de Armas Atômicas, e que têm governos sob forte influência de grupos religiosos igualmente fanáticos e expansivos. Ainda na mesma linha, criticam o autoritarismo e o continuísmo "golpista" da Venezuela, Equador e Bolívia, mas não dizem o mesmo da Colômbia ou de Honduras; criticam o desrespeito aos direitos humanos na China ou no Irã, e não costumam falar da Palestina, do Egito ou da Arábia Saudita, e assim por diante. Mas o que é mais grave, quando se trata de políticos e diplomatas, é o casuísmo das suas análises e dos seus julgamentos, e a ausência de uma visão estratégica e de longo prazo, para a política externa de um Estado que é hoje uma "potência emergente".

Como explicar essa súbita indolência mental das forças conservadoras, no Brasil? Talvez, recorrendo à própria história das ideias e das posições dos governos brasileiros que mantiveram, desde a independência, uma posição político-ideológica e um alinhamento internacional muito claro e fácil de definir. Primeiro, com relação à liderança econômica e geopolítica da Inglaterra, no século XIX, e depois, no século XX - e em particular após a Segunda Guerra Mundial - com relação à tutela norte-americana, durante o período da Guerra Fria. O inimigo comum era claro, a complementaridade econômica era grande, e os Estados Unidos mantiveram, com mão de ferro, a liderança ética e ideológica do "mundo livre". Depois do fim da Guerra Fria, os governos que se seguiram adotaram as políticas neoliberais preconizadas pelos EUA e se mantiveram alinhados com a utopia "cosmopolita" de Clinton.

A visão era idílica e parecia convincente: a globalização econômica e as forças de mercado produziriam a homogeneização da riqueza e do desenvolvimento, e essas mudanças econômicas contribuíram para o desaparecimento dos "egoísmos nacionais" e para a construção de um governo democrático e global, responsável pela paz dos mercados e dos povos. Mas, como é sabido, esse sonho durou pouco, e a velha utopia liberal - ressuscitada nos anos 90 - perdeu força e voltou para a gaveta, junto com a política externa subserviente dos governos brasileiros daquela década.

Depois de 2001, entretanto, o "idealismo cosmopolita" de Clinton foi substituído pelo "messianismo quase religioso" de Bush, que seguiu defendendo ainda por um tempo o projeto Alca, que vinha da administração Clinton. Mas depois da rejeição sul-americana ao projeto e depois da falência do Consenso de Washington e do fracasso da intervenção dos Estados Unidos a favor do golpe militar na Venezuela, de 2002, a política externa americana para a América do Sul ficou à deriva, e os EUA perderam a liderança ideológica do continente, apesar de manterem a supremacia militar e a centralidade econômica.

Nesse mesmo período, as forças conservadoras foram sendo desalojadas do poder, no Brasil e em quase toda a América do Sul. Mesmo assim, durante algum tempo seguiram repetindo a sua ladainha ideológica neoliberal. O golpe de morte veio com e eleição de Barak Obama. O novo governo democrata deixou para trás o idealismo cosmopolita e o messianismo religioso dos dois governos anteriores e assumiu uma posição realista e pragmática, em todo mundo. Seu objetivo tem sido, em todos os casos, manter a presença global dos Estados Unidos, com políticas diferentes para cada região do mundo.

Para a América do Sul sobrou muito pouco, quase nada, como estratégia e como referência doutrinária, apenas uma vaga empatia racial e um anti-populismo requentado. Como consequência, agora sim, nossos conservadores perderam a bússola. Ainda tentam seguir a pauta norte-americana, mas não está fácil, porque ela não é clara, não é moralista, nem é binária. Por isto, agora só lhes resta pensar com a própria cabeça para sobreviver politicamente. Mas isto não é fácil, toma tempo, e demanda um longo aprendizado.

José Luís Fiori é professor titular do Instituto de Economia da UFRJ e autor do livro "O Poder Global e a Nova Geopolítica das Nações" (Editora Boitempo, 2007). Escreve mensalmente às quartas-feiras.

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