Minissérie em seis capítulos do mestre Silvio Tendler. Reflexão fundamental nesses tempos de crise. Crise das idéias, crise do conceito de progresso, crise das utopias, crise econômica e financeira, crise do multilateralismo, crise ambiental, crise das democracias. Tempos de crise, tempo de reflexão.
Editorial do Estadão. Em política, como no amor, sempre há espaço para surpresas
Aliança contra a miséria
O cálculo de interesses é inseparável da ação política, quando não o seu mais potente motor. Ali onde deixou de ser conduzida predominantemente pelo confronto ideológico, a atividade tende a se pautar, para a imensa maioria dos seus praticantes, pela busca de ganhos que pavimentem o caminho ao que, afinal, conta acima de tudo nas democracias: a conquista do voto popular. Em tese, portanto, nada a objetar à permanente preocupação dos políticos com o custo-benefício eleitoral de suas decisões.
O problema, evidentemente, são os meios a que recorrem para acumular vitórias na vida pública e os esquemas de que se valem para aliciar parcelas do eleitorado suficientes para lhes conferir poder. Embora menos frequentemente do que seria de desejar, às vezes as artimanhas dos políticos para a promoção dos seus interesses acabam se traduzindo em atos e situações de genuíno benefício para a sociedade - e não apenas para os mais aptos entre os grupos de pressão que nela competem pelos diversos tipos de recursos que o Estado pode proporcionar.
Dessa perspectiva, teve literalmente tudo para ser bem recebido pelos brasileiros o evento da quinta-feira no Palácio dos Bandeirantes, que reuniu a presidente petista Dilma Rousseff com os quatro governadores do Sudeste, na companhia do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, convidado pelo anfitrião tucano Geraldo Alckmin para o lançamento do programa Brasil Sem Miséria na região, em regime de parceria. De fato, como disse Dilma, resumindo com propriedade o espírito da ocasião, "o Brasil sonhado por todos nós pode ser diferente em muitos aspectos. Porém estou certa de que ele é semelhante nas questões fundamentais".
Uma delas, evidentemente, é o imperativo de impedir que as diferenças de aspirações e os conflitos políticos delas decorrentes desbaratem a civilidade política. O ex-presidente Lula, por exemplo, passou boa parte de seu governo, sobretudo depois do escândalo do mensalão e quanto mais se aproximava a temporada sucessória, pregando o oposto. O Brasil por ele descrito era um país polarizado entre "o povo pobre" e as "elites egoístas", cujas respectivas posições diante das questões fundamentais não poderiam ter, por definição, nenhuma semelhança.
O mentor de Dilma, que assumiu dizendo ter recebido uma "herança maldita", deve ter ficado assombrado quando ela reconheceu que os êxitos do governo Fernando Henrique, em especial no combate à inflação, foram o que permitiu ao sucessor desenvolver os seus celebrados programas sociais. Além de fazer justiça ao tucano, a forma carinhosa como desde então o vem tratando - como se tornou a ver ainda agora nos Bandeirantes - decerto é uma fonte de azia para Lula. Tanto que, repetindo a indelicadeza de não aparecer no Planalto para o almoço com o americano Barack Obama, ele recusou o convite de Alckmin para o encontro de anteontem.
Não foi o único. O ex-governador José Serra, crítico do Brasil Sem Miséria e rival de Alckmin, fez o mesmo. Na contramão da linha seguida pelo antecessor no campo das políticas públicas, Alckmin pontilhou estes seus oito primeiros meses de mandato com uma série de iniciativas afinadas com as do governo federal, copiando algumas delas. "Ultrapassamos o período de disputas", afirmou, dirigindo-se à presidente. "Isso se deve ao seu patriotismo, generosidade e espírito conciliador." O grupo de Serra atribui o dilmismo de Alckmin à expectativa de recursos da União para programas que o ajudariam a se reeleger em 2014.
De modo parecido, Dilma estaria interessada em estender a mão ao PSDB não apenas em nome do "grande pacto republicano e pluripartidário" para levar adiante a "faxina contra a miséria", como declarou, mas também para manter a oposição no Congresso em fogo brando - já não lhe bastassem as atribulações com a base aliada. Mas os cálculos dos políticos envolvidos não mudam o essencial: a necessidade de engajar os Estados no combate à pobreza extrema (renda familiar mensal per capita abaixo de R$ 70). Mesmo em São Paulo, 1 milhão de pessoas vivem assim. No Sudeste todo, são mais de 2,7 milhões. A causa justifica o entendimento.
Belíssima montagem de vídeo de um som também dos melhores.
Em homenagem ao dia da consciência negra.
Meus olhos coloridos me fazem refletir. Em homenagem à primeira grande meta anunciada pelo novo governo: erradicar a miséria nos próximos 4 anos, acelerando o plano original que previa isso para os próximos 6 anos. Vejam que beleza, erradicar a miséria! A mera possibilidade de se discutir isso concretamente é um marco neste nosso Brasil erguido sob o jugo dos processos de colonização, escravidão, massacre dos índios, discriminação das mulheres e distanciamento do povo das grandes decisões nacionais.
No vídeo abaixo, a então Ministra Dilma, com amplo conhecimento, e mantendo a calma, desmonta a pseudo-jornalista Miriam Leitão, uma porta-voz de baixa qualificação dos mercados financeiros. Nocaute técnico, a infeliz foi derrubada várias vezes. Parênteses: Miriam está tão atrasada que até do Serra tomou paulada. A garotinha de recados dos money managers deve se ressentir do tempo em que tinha acesso à alta cúpula econômica do governo, quando acreditava piamente, até o fim, que 1 real valia 1 dólar.
Essa foi outra entrevista na qual Dilma foi mostrando a que veio. Ela sempre se saiu melhor assim, quando é mais espontânea, livre da marquetagem.
O distinto Senador Agripino Maia, ao questionar a então Ministra Dilma, numa CPI, sobre o fato de ter afirmado uma vez que mentiu durante a ditadura, ou seja, que sabia e estava acostumada a mentir, levou uma invertida que o trucidou. Abaixo então temos Dilma em um de seus melhores momentos. Creio que mesmo na campanha ela não chegou a ir tão bem quanto nesse depoimento espontâneo. Alguns analistas consideram essa ocasião um lançamento "informal", não planejado, um fato político que alavancou sua candidatura.
31 de outubro de 2010 é dia de celebração da democracia brasileira. Na China, a brincadeira começa daqui a pouco. Deixo a Aquarela Brasileira para celebrar mais esse momento histórico.
João Bosco, num clássico do "meu Brasil, que sonha com a volta do irmão do Henfil"
E o Zé Carioca numa peça fantástica. Eu sei, eu sei, Disney tem toda uma polêmica envolvida, wo jidou, tenho algumas várias reservas, mas não contaminemos toda arte com política.
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HORÁCIO, o amigo confidente de Hamlet, passa toda a tragédia de Shakespeare servindo de ouvido para as angústias do príncipe. No fim, recebe a incumbência de contar às futuras gerações a história do herói, mas a peça termina antes que possa fazê-lo. Preencher os longos momentos de silêncio, testemunhando todos os dias as mesmas palavras, é exercício fino de atuação. Horácio conduz a poesia por meio de sua atenção e ajuda a fazer a ponte entre Hamlet e o espectador. O ator Pedro Cardoso costuma dizer que o mundo é feito de monólogos. Segundo ele, ninguém presta realmente atenção no que o outro está dizendo. O ouvinte, no fundo, só espera a pausa do interlocutor para sair falando o que pensava enquanto o parceiro gastava o verbo. O virulento debate entre os dois candidatos que restaram é um exemplo típico da teoria do Pedro. Com apenas dois lutadores na arena, a necessidade de contrapor as diferenças triplicou. É forçoso impedir que o recado do oponente chegue ao eleitor. Cada um enaltece sua versão absoluta da realidade e despreza a do concorrente. Qualquer possibilidade que não seja a própria vitória é apresentada como uma catástrofe de proporções bíblicas. Como sofro de pessimismo crônico e desconfio das vacas gordas, tendo a concordar com as previsões funestas. A descrição de José Serra do que será o Brasil nas mãos de Dilma Rousseff, tomado por barganhas políticas de cargos nos setores estratégicos e perseguido pela execução sumária dos opositores, me causa arrepios. Da mesma maneira, tremo quando Dilma prevê o fim da justa distribuição de renda pelas mãos do PSDB ou recorda o processo de privatização no reinado tucano. Meu impulso é sair estocando comida, água e papel higiênico para me preparar para o dilúvio eminente. Eu sei que é ingenuidade achar que uma corrida eleitoral acontece na gentileza, mas estou com dificuldade de discernir o real do imaginário, a justiça da calúnia, e me preocupa a falta de perspectiva de diálogo futuro entre os dois oponentes. Nas edições compactas do debate da Band na internet, o vírus da incomunicabilidade se mostra mais agressivo. A montagem que favorece Dilma é extraordinária. Editaram apenas o início das respostas de Serra ao final de cada uma das assertivas intervenções da petista. Dilma desanca a suposta intenção de privatização da Petrobras por parte do opositor e Serra responde lacônico: "Sempre voltam a essa questão." Ponto. E Dilma cai novamente de sola em cima do passivo adversário. O corte é tão cirúrgico que consegue fazer com que Serra concorde com todas as acusações de Dilma. O vídeo exemplifica a maneira como os candidatos preparam a escuta na corrida eleitoral. Ao contrário do que se exige do ator que encarna Horácio, o candidato deve fechar o ouvido para o discurso do adversário até transformá-lo, também para o eleitor, em uma massa sonora sem relevância. Como dizia o rei Roberto: eles estão surdos! -------------------------------------------------------------------------------- FERNANDA TORRES é atriz
Estive ausente por excesso de trabalho e problemas no programinha que uso para acessar o youtube e blogs em geral. Tenho acompanhado bastante o processo eleitoral no Brasil. Tenho visto os programas eleitorais, vi o debate de domingo na Band, gostei bastante, os dois foram bem, o segundo turno os obriga a se mexer. Espero que se mostrem ainda mais, que sejam questionados, que se abram.
Lógico que há temas, como já comentei aqui, que não deveriam fazer parte do debate eleitoral. Há demagogia, inverdades, algumas calúnias, acusações pessoais, familiares, dos dois lados a coisa deu uma degringolada chata. Questões como as contas externas, o meio ambiente, o pré-sal, a reforma política, itens como o trem-bala, os investimentos para a Copa e as Olimpíadas, tudo isso é pouco discutido, e muito muito no geral, quando não estão ausentes do debate. O clima esquentou muito, perde a esfera pública, ganham as claques.
Eu não votei no primeiro turno. Não votarei no segundo turno. Explico: trabalhei numa seção eleitoral no sul da China, no segundo turno voltarei a trabalhar lá. Na verdade, fui e serei o representante da justiça eleitoral na seção, que beleza. Mas meu título eleitoral é de Pequim. Então não posso votar. Lamento, pois queria.
Por razões familiares, e por comodismo, não deveria escrever o que vem a seguir. Até por oportunismo, pois pode ser que haja uma virada. Mas vejo que o momento é delicado e há uma polarização. Aqueles que se interessam por política estão sendo chamados a se manifestar. Aqueles que, como eu, já votaram dos dois lados, e em outras circunstâncias em Ciro Gomes, Cristovam Buarque, e nessa provavelmente em Marina, estão tendo que pular para um dos lados. Apesar dos pesares, do baixo nível que a campanha atual apresenta por vezes, muitas vezes. E apesar de ambos candidatos, na minha opinião, terem história e competência para conduzir o Brasil.
Explico: não sou daqueles que vê o fim do mundo em nenhum dos casos. Independente de quem ganhar, temos que investir no diálogo, não no confronto. Torcer. Acreditar. Trata-se do processo democrático, mais do que a vitória de A ou de B.
Bom, vamos lá. Se pudesse votar, de maneira alguma seria branco ou nulo, não iria me eximir. Meu voto iria para a candidata que representa, sem sombra de dúvida, a continuidade de um projeto nacional, democrático e popular. Como bem poderia imaginar quem acompanha esse blog. Que de chapa branca não tem muita coisa, apesar de seguidos elogios à política externa brasileira. Basta ver meus comentários sobre os gênios do Banco Central. Ou sobre questões ligadas à Copa e às Olimpíadas. Assuntos sérios, fundamentais.
Enfim, meus pouquíssimos leitores hão de reconhecer que sou um idiota, eu sei. Não devia ter escrito isso, e muitas outras coisas, eu sei. Talvez alguns parentes vão querer me enforcar. Amigos vão comentar. Hewentalittlefunnyinthehead. Sei, sei bem, que o clima é de guerra, particularmente em SP. Mas fiquem tranquilos. Quase ninguém lê esse blog. Eu tenho os números. É coisa de 3 por dia, às vezes 5, e creio que muitas vezes os mesmos. Mas foi crescendo um sentimento e não dá pra esconder. É preciso descer do muro.
Meu voto seria para Dilma Rousseff, por certamente representar a continuidade de um projeto maior de nação. É claro que me preocupo com sua falta de experiência administrativa, com sua possível inabilidade, com denúncias de corrupção que não são devidamente conduzidas, com a maneira como o Congresso é e será levado, com seu temperamento forte, e as pressões que sofrerá, num Brasil que precisa de diálogo. Mas votaria nela, não tenho dúvidas disso.
Sou um idiota, eu sei. No curto prazo, em termos profissionais, que no meu caso são quase termos pessoais, o melhor seria a vitória do Serra.
Enfim, na China também há um idiota que ousou falar o que pensa. Ganhou o Nobel, mas tem apenas uma hora de sol por dia e está afastado de sua mulher. Estarei bem, para onde quer que a onda vá. Assim espero com o Brasil.
No post abaixo, manifestei a esperança de que no segundo turno pudessem ser discutidos temas mais substantivos, propostas, projetos, rumos mais estruturais do país. Mencionei as contas externas, cheguei a citar a PNAD, tive devaneios com pacto federativo e estrutura tributária, delirei com a reforma política.
Santa ingenuidade. Pelo que vi até agora, teremos um apelo barato a emoções, à mistura de política com religião, boatos, o denuncismo, comparações enviesadas entre governos ignorando um sentido de continuidade na democracia da Nova República, enfim, é guerra, é o duelo de versões, a superficialidade, uma espécie de vale-tudo maquiado pela marquetagem.
O blog provavelmente retornará, portanto, a seu habitual silêncio sobre as idas e vindas da batalha e confortavelmente, confesso, procurará discutir um pouco mais da desordem econômica e política internacional, mostrar um pouco da China que me fascina, e às vezes assusta, além de pitadas de respiros musicais, cinematográficos e etcéteras.
Para uns, o muro é tucanagem e tudo mais que se associa ao termo. Para outros, o muro é condescender com ameaças à democracia e à familia brasileira, ai ai ai...
A meus poucos e valorosos leitores, uma poesia para refrescar a alma.
Rudyard Kipling
If
If you can keep your head when all about you Are losing theirs and blaming it on you; If you can trust yourself when all men doubt you, But make allowance for their doubting too; If you can wait and not be tired by waiting, Or, being lied about, don't deal in lies, Or, being hated, don't give way to hating, And yet don't look too good, nor talk too wise;
If you can dream - and not make dreams your master; If you can think - and not make thoughts your aim; If you can meet with triumph and disaster And treat those two imposters just the same; If you can bear to hear the truth you've spoken Twisted by knaves to make a trap for fools, Or watch the things you gave your life to broken, And stoop and build 'em up with wornout tools;
If you can make one heap of all your winnings And risk it on one turn of pitch-and-toss, And lose, and start again at your beginnings And never breath a word about your loss; If you can force your heart and nerve and sinew To serve your turn long after they are gone, And so hold on when there is nothing in you Except the Will which says to them: "Hold on";
If you can talk with crowds and keep your virtue, Or walk with kings - nor lose the common touch; If neither foes nor loving friends can hurt you; If all men count with you, but none too much; If you can fill the unforgiving minute With sixty seconds' worth of distance run - Yours is the Earth and everything that's in it, And - which is more - you'll be a Man my son!
Tradução de Guilherme de Almeida
Se
Se és capaz de manter a tua calma quando Todo o mundo ao teu redor já a perdeu e te culpa; De crer em ti quando estão todos duvidando, E para esses no entanto achar uma desculpa; Se és capaz de esperar sem te desesperares, Ou, enganado, não mentir ao mentiroso, Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares, E não parecer bom demais, nem pretensioso;
Se és capaz de pensar --sem que a isso só te atires, De sonhar --sem fazer dos sonhos teus senhores. Se encontrando a desgraça e o triunfo conseguires Tratar da mesma forma a esses dois impostores; Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas Em armadilhas as verdades que disseste, E as coisas, por que deste a vida, estraçalhadas, E refazê-las com o bem pouco que te reste;
Se és capaz de arriscar numa única parada Tudo quanto ganhaste em toda a tua vida, E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada, Resignado, tornar ao ponto de partida; De forçar coração, nervos, músculos, tudo A dar seja o que for que neles ainda existe, E a persistir assim quando, exaustos, contudo Resta a vontade em ti que ainda ordena: "Persiste!";
Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes E, entre reis, não perder a naturalidade, E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes, Se a todos podes ser de alguma utilidade, E se és capaz de dar, segundo por segundo, Ao minuto fatal todo o valor e brilho, Tua é a terra com tudo o que existe no mundo E o que mais --tu serás um homem, ó meu filho!
Maria Rita Kehl, no Estadão (parece que foi demitida por causa do artigo)
Este jornal teve uma atitude que considero digna: explicitou aos leitores que apoia o candidato Serra na presente eleição. Fica assim mais honesta a discussão que se faz em suas páginas. O debate eleitoral que nos conduzirá às urnas amanhã está acirrado. Eleitores se declaram exaustos e desiludidos com o vale-tudo que marcou a disputa pela Presidência da República. As campanhas, transformadas em espetáculo televisivo, não convencem mais ninguém. Apesar disso, alguma coisa importante está em jogo este ano. Parece até que temos luta de classes no Brasil: esta que muitos acreditam ter sido soterrada pelos últimos tijolos do Muro de Berlim. Na TV a briga é maquiada, mas na internet o jogo é duro.
Se o povão das chamadas classes D e E – os que vivem nos grotões perdidos do interior do Brasil – tivesse acesso à internet, talvez se revoltasse contra as inúmeras correntes de mensagens que desqualificam seus votos. O argumento já é familiar ao leitor: os votos dos pobres a favor da continuidade das políticas sociais implantadas durante oito anos de governo Lula não valem tanto quanto os nossos. Não são expressão consciente de vontade política. Teriam sido comprados ao preço do que parte da oposição chama de bolsa-esmola.
Uma dessas correntes chegou à minha caixa postal vinda de diversos destinatários. Reproduzia a denúncia feita por “uma prima” do autor, residente em Fortaleza. A denunciante, indignada com a indolência dos trabalhadores não qualificados de sua cidade, queixava-se de que ninguém mais queria ocupar a vaga de porteiro do prédio onde mora. Os candidatos naturais ao emprego preferiam viver na moleza, com o dinheiro da Bolsa-Família. Ora, essa. A que ponto chegamos. Não se fazem mais pés de chinelo como antigamente. Onde foram parar os verdadeiros humildes de quem o patronato cordial tanto gostava, capazes de trabalhar bem mais que as oito horas regulamentares por uma miséria? Sim, porque é curioso que ninguém tenha questionado o valor do salário oferecido pelo condomínio da capital cearense. A troca do emprego pela Bolsa-Família só seria vantajosa para os supostos espertalhões, preguiçosos e aproveitadores se o salário oferecido fosse inconstitucional: mais baixo do que metade do mínimo. R$ 200 é o valor máximo a que chega a soma de todos os benefícios do governo para quem tem mais de três filhos, com a condição de mantê-los na escola.
Outra denúncia indignada que corre pela internet é a de que na cidade do interior do Piauí onde vivem os parentes da empregada de algum paulistano, todos os moradores vivem do dinheiro dos programas do governo. Se for verdade, é estarrecedor imaginar do que viviam antes disso. Passava-se fome, na certa, como no assustador Garapa, filme de José Padilha. Passava-se fome todos os dias. Continuam pobres as famílias abaixo da classe C que hoje recebem a bolsa, somada ao dinheirinho de alguma aposentadoria. Só que agora comem. Alguns já conseguem até produzir e vender para outros que também começaram a comprar o que comer. O economista Paul Singer informa que, nas cidades pequenas, essa pouca entrada de dinheiro tem um efeito surpreendente sobre a economia local. A Bolsa-Família, acreditem se quiserem, proporciona as condições de consumo capazes de gerar empregos. O voto da turma da “esmolinha” é político e revela consciência de classe recém-adquirida.
O Brasil mudou nesse ponto. Mas ao contrário do que pensam os indignados da internet, mudou para melhor. Se até pouco tempo alguns empregadores costumavam contratar, por menos de um salário mínimo, pessoas sem alternativa de trabalho e sem consciência de seus direitos, hoje não é tão fácil encontrar quem aceite trabalhar nessas condições. Vale mais tentar a vida a partir da Bolsa-Família, que apesar de modesta, reduziu de 12% para 4,8% a faixa de população em estado de pobreza extrema. Será que o leitor paulistano tem ideia de quanto é preciso ser pobre, para sair dessa faixa por uma diferença de R$ 200? Quando o Estado começa a garantir alguns direitos mínimos à população, esta se politiza e passa a exigir que eles sejam cumpridos. Um amigo chamou esse efeito de “acumulação primitiva de democracia”.
Mas parece que o voto dessa gente ainda desperta o argumento de que os brasileiros, como na inesquecível observação de Pelé, não estão preparados para votar. Nem todos, é claro. Depois do segundo turno de 2006, o sociólogo Hélio Jaguaribe escreveu que os 60% de brasileiros que votaram em Lula teriam levado em conta apenas seus próprios interesses, enquanto os outros 40% de supostos eleitores instruídos pensavam nos interesses do País. Jaguaribe só não explicou como foi possível que o Brasil, dirigido pela elite instruída que se preocupava com os interesses de todos, tenha chegado ao terceiro milênio contando com 60% de sua população tão inculta a ponto de seu voto ser desqualificado como pouco republicano.
Agora que os mais pobres conseguiram levantar a cabeça acima da linha da mendicância e da dependência das relações de favor que sempre caracterizaram as políticas locais pelo interior do País, dizem que votar em causa própria não vale. Quando, pela primeira vez, os sem-cidadania conquistaram direitos mínimos que desejam preservar pela via democrática, parte dos cidadãos que se consideram classe A vem a público desqualificar a seriedade de seus votos.
Pedem-me um palpite, então vamos lá. Dilma segue favoritíssima e deve levar com alguma folga, do tipo 55% a 45%. A democracia não estará ameaçada, o país seguirá avançando e a oposição terá quatro anos para se renovar e apresentar um novo discurso que atualize seu programa para 2014.
E aproveitando que supostamente estou no encontro do Ocidente com o Oriente, arrisco alguma filosofia política barata.
Há riscos para Dilma, que nunca foi testada nas urnas: na política, como na vida, há muito mais de paixão do que de razão. E a paixão, como sabemos, tem idas e vindas, é surpreendente, afortunada ou traiçoeira. A distância entre o amor e o ódio pode se mostrar pequena, a depender das circunstâncias.
E no caso de argumentos mais racionais, os quais não vou enumerar aqui, há diversas variáveis novas nesse jogo do segundo turno. Portanto, é possível arriscar, mas não asseguro nada. Garanto apenas que a democracia brasileira sairá mais forte independente de quem vencer as eleições. Não se brinca com a soberania popular. Os perdedores que se reciclem para 2014.
Segundo turno nas eleições presidenciais. Marina Silva, adorada Marina de tempos atrás, está aí com quase 20 milhões de votos e deu esse presente para a democracia brasileira, a oportunidade de aprofundarmos a discussão, forçar os candidatos a debaterem com mais responsabilidade o Brasil que desejamos e o que farão para alcançá-lo. Aqui, aqui, aqui, ali, acolá, acá, seis posts em meados de agosto de 2009 sobre a importância da candidatura de nossa Rainha Marina, como a chamei no último desses seis posts. O blog antecipa tendências, heheh, é um oráculo da política nacional ho ho ho.
Da parte do Serra, espero que deixe de lado o vitimismo sigiloso, as conversas sobre Farc, exageros sobre o Irã, que ignore a política do medo defendida por parte de seus aliados, com direito a vídeos apócrifos, boatos, temas como aborto, a suposta ameaça à democracia, às liberdades e aos direitos individuais. Essas supostas ameaças não existem e dificultam a discussão dos rumos do país, desviam do assunto. O Governo Lula foi bem sucedido, Dilma é uma mulher com uma grande história, por favor gostaria que Serra se limitasse a debater com ela os rumos do país em 2011-2014. E também como espera governar sem ter maioria no Congresso (já sabemos, o PMDB vira a casaca rapidinho, mas a qual preço?).
Da parte de Dilma, espero que não fique olhando para o passado, mas sim para o futuro. Nem tudo começou em 2003, nem tudo voltará a 1995 caso Serra seja eleito. O mundo mudou, o país mudou, é tempo de olhar para frente. Penso que ela deveria aprofundar-se nos desafios do Brasil de 2010 sem, é claro, deixar de destacar avanços trazidos pelo Governo Lula, mas apontando quais rumos manterá e o que alterará. Pois é fato que o Brasil de Dilma não será o Brasil de Lula. E o mundo de Dilma não será o mundo de Lula. Venho alertando: o cenário internacional se deteriora a olhos vistos. Dilma não tem experiência na chefia do executivo e terá que lidar com muitas cascas de banana e armadilhas, da oposição, mas também de seus próprios aliados (aliados? ou sanguesugas?).
Da parte de Marina, espero que não fique em cima do muro. Barganhe e dê apoio ao candidato que assumir o compromisso mais firme com sua agenda ambiental.
Segue lista não exaustiva, e sem ordem de prioridade, de temas/questões para os dois:
--> Os dados da PNAD 2009, uma enorme fotografia sobre o Brasil que oferece diversas pistas de coisas que devem ser melhoradas como, por exemplo, o acesso a saneamento básico, educação, desigualdades sociais e regionais diversas.
--> O financiamento da economia brasileira. O déficit externo, o nível de juros, o câmbio, a relação entre Estado e Mercado. Creio que uma medida simples, que já seria extremamente positiva, seria gravar as reuniões do COPOM e tornar suas atas públicas em 2 anos. Isso já faria com que os diretores do BC fossem mais cautelosos. Outra medida importante seria jogar mais areia, muita areia, na ciranda dos recursos externos que entram para ganhar na dobradinha câmbio-juros. Isso não se anuncia assim, mas pode-se comprometer de maneira mais firme com a interrupção desse processo vicioso.
--> O financiamento público eleitoral, a reforma política. As relações com o Congresso. Em que bases serão feitas as coalizões e como pretendem torná-la mais propositiva e menos distributiva, se é que me entendem.
--> A estrutura tributária regressiva, o pacto federativo.
--> Esses dois itens acima são altamente problemáticos. Todos reconhecem que algo deve ser feito, mas todos têm suas próprias reformas, o que impede que a questão saia do lugar.
--> A justiça brasileira. O que acham do CNJ, o papel do STF, a nomeação de juízes para os tribunais superiores.
--> A estrutura de poder, os gastos, as responsabilidades para a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Estamos repetindo os erros do Pan. Dinheiro público, lucros privados.
--> A questão ambiental, o desmatamento na Amazônia, mas também no cerrado, a prevalência de automóveis, a abertura de novas rodovias, os incêndios que todo ano devastam os parques nacionais (a Chapada e os Parques Nacionais do DF foram detonados de novo esse ano).
--> O financiamento das atividades culturais, a relação entre cultura e educação. Vide Gil e Caetano abaixo.
--> Os impactos do aumento da extração de minérios e combustíveis sobre o meio-ambiente.
--> Os dois deveriam assumir compromissos de que, uma vez na oposição, não se comportarão como o PT em 1995-2002 e o PSDB-DEM em 2003-2010. Isso é fundamental.
Ficamos hoje com mais um vídeo da Aquarela do Brasil, Gil & Caetano, Caetano & Gil, viva a Bahia, viva o Brasil.
...no Brasil em 3 de outubro de 2010. É evidente que avançamos. É evidente que em comparação com a maior parte dos países do mundo, estamos bem na foto. Mas há muitos problemas, há uma longa estrada, passo a passo, com calma, respiração pausada e prolongada, ponderação, bom senso. Os dados da PNAD 2009, recém divulgados, nos dão uma série de pistas. E as questões da estrutura política, dos sistemas judiciário e eleitoral, do financiamento da economia brasileira, da prevalência de um setor rentista, da violência urbana, da (falta de) convivência social, da educação, são todas de fundamental importância.
Sim, brindemos à democracia brasileira, à melhoria das condições de vida da população, ao aumento do emprego e da renda, à queda da desigualdade, à importância de um Brasil presente nos grandes temas da política internacional. Mas não nos percamos em perigosas euforias. Por ora, cansado após um longo e bem sucedido dia, fico com uma frase de hoje no jornal que de tão pitoresca e cômica parece coisa de frasista, de humorista, mas é uma constatação de um cientista político, no microcosmo da realidade cotidiana, na qual nossa mais alta Corte divaga por longas horas em linguagem hermética para concretizar, num labirinto de interpretações, o nada (ficha limpa vale ou não vale agora?)ou mesmo a negação do que havia sido aprovado pelo Poder Legislativo no ano passado (exigência de título eleitoral, mas qual a razão de terem aprovado isso?).
O ponto é: faltando dias para a eleição? Por que tanta demora? Quais os caminhos, ou descaminhos, da piada pronta?
Apesar de tudo, avançamos. Mas há muito o que fazer. Bom, enfim, fiquei na obviedade. Até amanhã.
"O Brasil é um país tão excêntrico que, a três dias da eleição, ninguém sabia como votar, e, hoje, não sabemos direito em quem podemos votar." DO CIENTISTA POLÍTICO RUBENS FIGUEIREDO, analisando a reviravolta quanto à documentação necessária para votar e a indefinição sobre os atingidos pela Lei da Ficha Limpa.