sábado, 27 de agosto de 2011

Livre-pensar é apenas pensar

Deus deveria ter espalhado câmeras no Jardim do Éden

HÉLIO SCHWARTSMAN
ARTICULISTA DA FOLHA

Num saboroso artigo publicado em "Philosophy Now", Emrys Westacott escrutina as implicações filosóficas da proliferação de câmeras de vigilância.

Em princípio, elas são perfeitas, e Deus deveria ter enchido o Jardim do Éden delas. Aí, quem sabe, Eva, quando tentada pela serpente a provar do fruto proibido, sabendo que estava sendo monitorada, tivesse tomado a decisão certa. Não haveria pecado original, queda, nem expulsão do Paraíso. Mulheres não experimentariam as dores do parto e nós não precisaríamos trabalhar. Melhor ainda, as câmaras não comprometem o livre-arbítrio, tão caro ao Criador.

A ideia central aqui é que as câmaras, ao fazer com que dever moral e interesse próprio (não ser apanhado) caminhem juntos, nos impelem a tomar as decisões certas, o que é bom para nós e para a sociedade. Aplaudiriam as câmaras filósofos como Platão e Thomas Hobbes.

É claro, porém, que em filosofia as coisas nunca são tão simples. Deus não colocou câmeras no Jardim do Éden, muito provavelmente porque Ele é kantiano. E, para Immanuel Kant, podemos fazer o que é certo ou bem por temer a sanção ou por reconhecer a racionalidade por trás dessa lei. Só no segundo caso somos verdadeiramente morais e livres. As câmeras, na verdade, até impediriam o nosso crescimento como agentes morais.

Quando calculamos os benefícios utilitários da hipervigilância, que se traduzem na diminuição de crimes e acidentes, não é difícil descartar as objeções kantianas como meras abstrações acadêmicas. Mas, de novo, as coisas não são tão simples.
Se você tivesse a chance de escolher se vai trabalhar numa empresa que monitora tudo o que você faz no computador ou numa que o deixa livre desde que cumpra as suas tarefas, qual escolheria?

Como se vê, não é tão fácil se desfazer do ideal kantiano do aprimoramento moral do indivíduo. Ele acaba sempre voltando, sob diferentes roupagens, como a liberdade.
Westacott conclui seu artigo lembrando que o contexto faz a diferença. Existem situações em que a vigilância eletrônica favorece bons comportamentos, mas, em outras, notadamente as mais privadas, como entre marido e mulher, ela estraga a ideia de desenvolvimento moral, a qual, embora utópica, funciona como uma bússola.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

sábado, 20 de agosto de 2011

Aliança contra a miséria

Editorial do Estadão. Em política, como no amor, sempre há espaço para surpresas

Aliança contra a miséria

O cálculo de interesses é inseparável da ação política, quando não o seu mais potente motor. Ali onde deixou de ser conduzida predominantemente pelo confronto ideológico, a atividade tende a se pautar, para a imensa maioria dos seus praticantes, pela busca de ganhos que pavimentem o caminho ao que, afinal, conta acima de tudo nas democracias: a conquista do voto popular. Em tese, portanto, nada a objetar à permanente preocupação dos políticos com o custo-benefício eleitoral de suas decisões.

O problema, evidentemente, são os meios a que recorrem para acumular vitórias na vida pública e os esquemas de que se valem para aliciar parcelas do eleitorado suficientes para lhes conferir poder. Embora menos frequentemente do que seria de desejar, às vezes as artimanhas dos políticos para a promoção dos seus interesses acabam se traduzindo em atos e situações de genuíno benefício para a sociedade - e não apenas para os mais aptos entre os grupos de pressão que nela competem pelos diversos tipos de recursos que o Estado pode proporcionar.

Dessa perspectiva, teve literalmente tudo para ser bem recebido pelos brasileiros o evento da quinta-feira no Palácio dos Bandeirantes, que reuniu a presidente petista Dilma Rousseff com os quatro governadores do Sudeste, na companhia do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, convidado pelo anfitrião tucano Geraldo Alckmin para o lançamento do programa Brasil Sem Miséria na região, em regime de parceria. De fato, como disse Dilma, resumindo com propriedade o espírito da ocasião, "o Brasil sonhado por todos nós pode ser diferente em muitos aspectos. Porém estou certa de que ele é semelhante nas questões fundamentais".

Uma delas, evidentemente, é o imperativo de impedir que as diferenças de aspirações e os conflitos políticos delas decorrentes desbaratem a civilidade política. O ex-presidente Lula, por exemplo, passou boa parte de seu governo, sobretudo depois do escândalo do mensalão e quanto mais se aproximava a temporada sucessória, pregando o oposto. O Brasil por ele descrito era um país polarizado entre "o povo pobre" e as "elites egoístas", cujas respectivas posições diante das questões fundamentais não poderiam ter, por definição, nenhuma semelhança.

O mentor de Dilma, que assumiu dizendo ter recebido uma "herança maldita", deve ter ficado assombrado quando ela reconheceu que os êxitos do governo Fernando Henrique, em especial no combate à inflação, foram o que permitiu ao sucessor desenvolver os seus celebrados programas sociais. Além de fazer justiça ao tucano, a forma carinhosa como desde então o vem tratando - como se tornou a ver ainda agora nos Bandeirantes - decerto é uma fonte de azia para Lula. Tanto que, repetindo a indelicadeza de não aparecer no Planalto para o almoço com o americano Barack Obama, ele recusou o convite de Alckmin para o encontro de anteontem.

Não foi o único. O ex-governador José Serra, crítico do Brasil Sem Miséria e rival de Alckmin, fez o mesmo. Na contramão da linha seguida pelo antecessor no campo das políticas públicas, Alckmin pontilhou estes seus oito primeiros meses de mandato com uma série de iniciativas afinadas com as do governo federal, copiando algumas delas. "Ultrapassamos o período de disputas", afirmou, dirigindo-se à presidente. "Isso se deve ao seu patriotismo, generosidade e espírito conciliador." O grupo de Serra atribui o dilmismo de Alckmin à expectativa de recursos da União para programas que o ajudariam a se reeleger em 2014.

De modo parecido, Dilma estaria interessada em estender a mão ao PSDB não apenas em nome do "grande pacto republicano e pluripartidário" para levar adiante a "faxina contra a miséria", como declarou, mas também para manter a oposição no Congresso em fogo brando - já não lhe bastassem as atribulações com a base aliada. Mas os cálculos dos políticos envolvidos não mudam o essencial: a necessidade de engajar os Estados no combate à pobreza extrema (renda familiar mensal per capita abaixo de R$ 70). Mesmo em São Paulo, 1 milhão de pessoas vivem assim. No Sudeste todo, são mais de 2,7 milhões. A causa justifica o entendimento.

sábado, 13 de agosto de 2011

A Crise Revisitada

Pois é, pois é, bidu. Meus amigos, a preguiça grassa, e vou nos poupar de links antigos, comentários passados, elocubrações remotas. Cansei de alertar para os riscos à frente, a tibieza regulatória, a falta de coordenação e liderança internacional, o predomínio dos lobbies da alta finança contrarrestando as necessárias reformas, tantas coisas...

E agora culpam os governos. Mas ora, os governos estiveram e estão capturados pelo mercado, pelos magos da multiplicação financeira.

Governos também erraram e erram, são desgovernos, sem idéias, submissos, incapazes, é vero.

Mas o cinismo de parte das elites européias e norte-americana é impressionante. Jogarão a conta nos mais pobres, nos que estiveram e estão fora da ciranda, e afundarão ainda mais seus países na recessão.

As coisas não estão simples no cenário internacional. Um grande desarranjo. Como Stiglitz colocou: "A confiança voltou. A confiança de que tudo vai piorar."

E não limito esses comentários à questão dos mercados, da crise das dívidas, da crise de demanda. A política internacional, tantos nos temas multilaterais, como nos cenários geo-estratégicos dos planos regional e bilateral, em muitos casos, está só piorando.

A população cresce, os recursos são escassos. Eu acordo todo dia em Pequim, olho para o céu, e lamento pelo milagre do GDP growth. Nossos amigos chineses seguem cada vez mais rápido, mas para onde mesmo?

"Parem o mundo, eu quero descer" já dizia algum grande poeta.