Aos meus três leitores, comento que tenho escrito aqui, de uma maneira ou de outra, geralmente falando sobre crise, copom, câmbio, mídia, Sarney, Copa e etcétera, que há falhas muito graves na maneira como determinados debates têm sido conduzidos no país. São simplificações, visões rasteiras, PSDB x PT, ética x corrupção, racionalidade do mercado x politicagem no setor público, pusilânime com Bolívia x agressivo contra EUA, enfim, distorções presentes nos mais diversos temas que procuram encaixar coisas complexas em caixinhas bem x mal. Tem bastante gente por aí cheia de certezas. Eu prefiro ficar com minhas perguntas.
No excelente caderno Aliás do Estadão, no domingo último, temos um artigo de um sociólogo, professor em Juiz de Fora, Jessé de Souza, sob o título "O Estado de todas as culpas".
Vou me limitar, agora, a transcrever o artigo. Estava jogando bola e estou sem condições de comentá-lo. Mas recomendo vivamente a leitura. Lógico que teria observações a alguns trechos, é tudo muito polêmico, mas o raciocínio tem a ver com muita coisa que escrevo, sistematizou alguns pontos que talvez eu já tenha assinalado, enfim, foi mesmo uma grata surpresa ler esse texto e vou procurar mais trabalhos de nosso amigo Jessé...
O Estado de todas as culpas
Ele é só associado à ‘politicagem’. E o mercado, à ‘racionalidade’: eis a trava do debate público no Brasil
Jessé Souza*
O debate público e político brasileiro, há algumas décadas, é travado sob a forma de um suposto conflito entre mercado e Estado. A atual discussão sobre o petróleo do assim chamado pré-sal apenas o confirma. Assim sendo, se quisermos compreender efetivamente o que está em jogo nesse debate conjuntural sobre o que fazer com o dinheiro do petróleo recém-descoberto - assim como compreender os debates conjunturais do passado recente e dos que ainda vão acontecer no futuro próximo - temos que focar nossa capacidade compreensiva na reconstrução da estrutura invisível presente em todas essas situações conjunturais passageiras. O tema do debate muda ao sabor das circunstâncias. Sua "estrutura profunda", no entanto, permanece a mesma. Qual é a estrutura profunda nunca tematizada enquanto tal na mídia? O Estado é sempre suspeito de "politicagem" e de "aparelhamento" por indicações políticas e o mercado é definido como instância "técnica", ou seja, reflexo da "racionalidade pura" e do "cálculo técnico". Um é a esfera do "privilégio inconfessável" e o outro o reflexo da "razão técnica" supostamente no interesse de todos. É isso que explica o foco constante e diário na "corrupção política" como a lembrar ao público onde está o mal e onde está o bem. Como tudo no mundo social, essa é uma realidade "construída", fruto de uma leitura seletiva e interessada do mundo.
Como a recente crise mundial mostrou sobejamente (já nos esquecemos dela?), a corrupção é endêmica tanto no mercado quanto no Estado em qualquer latitude do globo. A mitigação da corrupção em qualquer esfera da vida ocorre quando os mecanismos de controle ganham eficiência. A leitura seletiva do Estado como ineficiente e corrupto e do mercado como pura virtude esconde a ambiguidade constitutiva dessas duas instituições que podem servir ao bem ou ao mal conforme seu uso. Por que a "dramatização" cotidiana mil vezes repetida de justamente essa visão distorcida do mundo? A meu ver porque ela é o núcleo mesmo da violência simbólica - aquele tipo de violência que não "aparece" como violência - que torna possível a manutenção e a reprodução continuada no tempo da sociedade complexa mais desigual e injusta do planeta.
O mundo social não é perceptível a olho nu. Pode-se ver a pobreza e a desigualdade nas ruas e não se perceber suas causas. O brasileiro das ruas aprendeu a vincular as mazelas sociais do Brasil à corrupção política. A tese do Estado corrupto - ou a tese do "patrimonialismo" na sua versão erudita igualmente conservadora e frágil - mata dois coelhos com uma mesma cajadada. Como o conflito que ela cria é falso de fio a pavio - na realidade, mercado e Estado são interdependentes e igualmente ambivalentes -, ela ajuda a fabricar uma realidade que permite esconder todos os conflitos sociais reais. Pior ainda. Como uma falsa oposição é dramatizada como "conflito", tem-se a impressão de que existe efetivo debate crítico entre nós, de que temos uma esfera pública atuante, uma mídia atenta e crítica e um país politicamente avançado, quando a realidade é, ponto por ponto, precisamente o inverso.
A dramatização do Estado ineficiente e corrupto serve como fachada para "representar" a política sob a forma simplista, subjetivada e maniqueísta das novelas, enquanto se cala e se esconde acerca das bases de poder real na sociedade. Toda a aparência é de "crítica social", enquanto toda ação efetiva é a da conservação dos privilégios reais. Assim, fala-se do combate aos "coronéis" e às "oligarquias" - sempre caricatamente nordestinas como o bigode de Sarney - enquanto escondem-se as reais novas oligarquias responsáveis por abocanhar quase 70% do PIB sob a forma de lucro ou juros reduzindo os salários a pouco mais de 30%. Nos países europeus social-democratas essa proporção é inversa. As falsas oposições escondem oposições reais. O falso "charminho crítico" da dramatização do Estado ineficiente e corrupto serve para esconder e desviar a atenção para a luta de classes que cinde o país entre privilegiados que possuem um exército de pessoas para servi-los a baixo preço e dezenas de milhões de excluídos sem nenhuma chance nem esperança de mudança de vida.
Para todo um exército de analistas que se concentram no "teatro" da política - com suas fofocas e escaramuças diárias entre senadores e deputados com poder decisório entre o nada e o muito pouco - falar-se em "luta de classes" é um tabu. Luta de classes é coisa do passado, tem a ver com greves de trabalhadores e sindicatos que estão desaparecendo ou perdendo importância. Essa é a cegueira da política como "espetáculo" pseudocrítico para um público acostumado à informação sem reflexão. A luta de classes só é percebida nas raras vezes em que as classes oprimidas logram alguma forma de reação pública eficaz. Condenam-se ao esquecimento todas as formas naturalizadas e cotidianas do uso e abuso do trabalho barato e não valorizado. Um pequeno exemplo. O exército de babás, empregadas, faxineiras, porteiros, office-boys, motoboys, que permitem que a classe média brasileira possa dedicar seu tempo a trabalhos valorizados e bem pagos relegando o trabalho pesado e mal pago a outra classe de seres humanos que tiveram o azar de nascer na família (e na classe social) errada. Isso não é "luta de classes"? Apenas porque não há piquetes, polícia e sangue nas ruas? Apenas porque essa dominação é silenciosa e aceita, dentre outras coisas porque também eles, os humilhados e ofendidos, ouvem todo dia que o nosso único mal é a corrupção no Senado ou em algum órgão estatal?
E para as classes média e alta? Não é um verdadeiro presente dos deuses ter privilégios que nem seus consortes europeus ou norte-americanos possuem e ainda poder ter a consciência tranquila de quem sabe que o mal do Brasil está em "outro" lugar, lá bem longe em Brasília, um "outro" abstrato, mau por definição, em relação ao qual podemos nos sentir a "virtude" por excelência? Não se fecha com isso um círculo de ferro onde necessidades sociais e existenciais podem ser manipuladas por uma política e uma mídia conservadora e seu público ávido por autolegitimação e por consciência tranquila?
Para Max Weber - pensador crítico mal lido entre nós como inspiração para a tese do patrimonialismo - os ricos, saudáveis e charmosos, em todas as épocas e em todos os lugares, não querem apenas ser ricos, saudáveis e charmosos. Eles querem saber que têm "direito" a serem ricos, saudáveis e charmosos em oposição aos pobres, doentes e feios. É essa necessidade o verdadeiro fundamento e razão do sucesso da tese da suspeição do Estado entre nós. Ela serve como uma luva para não perceber e naturalizar um cotidiano injusto e ainda transferir qualquer responsabilidade para uma entidade abstrata e longínqua, garantindo boa consciência e aparência de envolvimento crítico na política.
A cortina de fumaça do falso debate acerca da demonização do Estado serve para deslocar a única e verdadeira questão do Brasil moderno: uma desigualdade abissal que separa gente com todos os privilégios, de um lado, de subgente sem nenhuma chance real de uma vida digna desse nome, de outro lado. O culpado desse crime coletivo não é apenas o bigode de Sarney. É toda uma sociedade infantilizada por falsos debates e por falsas prioridades e que ainda se pensa - suprema autoindulgência - como crítica e atuante. Esse projeto político não é de partidos, até porque o consenso conservador atinge todos indistintamente. As tímidas iniciativas de política social do atual governo, por exemplo, são mero paliativo da efetiva redenção dos secularmente humilhados e ofendidos. O que fazer com os recursos do pré-sal poderia e deveria ser o estopim para um novo debate brasileiro, corajoso, maduro e generoso, por oposição ao debate covarde, infantil e mesquinho que temos hoje.
*Doutor em sociologia pela Universidade de Heidelberg (Alemanha) e professor titular da Universidade Federal de Juiz de Fora, é autor de A Ralé Brasileira: Quem É e Como Vive, a ser publicado em outubro pela UFMG
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